ÁGAPE: Símbolo e ritual do ser solidário

Nota Introdutória

Todas as Pessoas certamente já experienciaram que as interações que mantemos ao longo de toda a nossa existência, quer com os outros, quer com os objetos, contém uma complexa dimensão simbólica, pese embora, disso, não estejamos por vezes, muito conscientes. Muitos cientistas sociais, assinalando tal facto, caracterizavam o ser humano, embora algo redutoramente, como Homos Simbólico.

Um dos aspectos, talvez, interessantes que se colocam ao nosso entendimento, nesta matéria, configura o reiterado hábito, da participação colectiva em antiquíssimos rituais sociais, relevando a partilha (de alimentos) numa refeição comum. Num determinado momento (precoce) do processo histórico cultural, num determinado tempo/lugar do mundo antigo, até aos nossos dias, a dimensão afectiva e espiritual associada a tal acto, tão gratificante e tão carregado de densidade simbólica, para além da importância e preservação da subsistência, contribuía (e contribui) para a exponenciação da coesão grupal, de reforço ao processo identitário, de estabelecer ou reforçar, relações de solidariedade, aliança e amizade.

Contextos espaço-temporais do processo simbólico

Os diversos modelos e narrativas que intentam compreender a evolução da humanidade, invariavelmente reportam (ao menos de forma implícita), dois eixos orientadores, fundamentais da experiência humana. Referimo-nos ao Tempo e ao Espaço e estão na base de inumeráveis representações simbólicas, reportando um esforço constante de apreender novos sentidos e significados da realidade existencial. Com efeito a referência a essa dualidade complementar, sobre cuja polissemia de sentidos e significados, quase(?) toda a aprendizagem se processou, ao longo da evolução sócio-biológica e cultural da humanidade, constitui uma recorrência notável. À medida que se foi engendrando respostas adaptativas eficazes face aos desafios do ambiente, à medida que nos fomos distanciando da animalidade originária, à medida que fomos necessitando de fornecer(novos) sentidos e significados ao que ainda era desconhecido – logo ainda inefável-, o processo primordial de elaboração do simbólico, configurou desde sempre, um dispositivo cultural com um valor instrumental essencial de uma enorme versatilidade. Era preciso, era urgente, dar sentido e significado às coisas que n os rodeavam e para as quais, ainda não se dispunha da palavra que as nomeasse. Nada mais plástico, nada mais flexível que a linguagem metafórica e o pensamento simbólico, para exprimir condensadamente, aquilo que não pudemos (ainda) descriminar.

Os cientistas sociais (algo redutoramente) nos seus debates, tenderam a privilegiar a função (do símbolo) centrados quase exclusivamente em aspectos como a coesão social e os complexos rituais; a preservação das fronteiras sociais, ou ainda, as relações entre comunicação simbólica e  metafórica e comunicação racional e analítica; conhecimento e linguagem. Sem entrar em exercícios de desbravamento conceptual, tem sido possível admitir, que, os símbolos, não constituem uma realidade autónoma, estando profundamente imbricados no processo cultural. Mas não apenas isso: é igualmente admitido que, para surpreender tal versatilidade de sentidos e significados, torna-se necessário considerar a inclusão de cada simbolização (em cada momento do processo evolutivo – cultural), num sistema complexo, em que os símbolos se reenviam interactivamente um aos outros, assumindo eventualmente novas dimensões e perspectivas. Configura-se assim uma espécie de constelação simbólica, constituindo um sistema aberto, em que cada símbolo se encontra em interacção dinâmica com outros, podendo transfigurar-se formal e semanticamente ao longo da dupla dimensão espaço/tempo e exprimir-se numa narratividade infindável. A dualidade tempo-espaço está de tal modo imbricada na totalidade do ser e do existir, que até a própria etimologia do próprio verbo “ser ou estar”, revela em si mesmo essa dupla dimensão (ser/temporal; estar/espacial).

É neste sentido que Norbert Elias na introdução da sua obra sobre Teoria  Simbólica (Ed. Celta, Oeiras,1994), referindo-se à noção de espaço, afirma que “…pode ser representada por conceitos como largura, profundidade, comprimento…”, podendo constantemente actualizar-se e integrar-se em infinitos processos de simbolização e metaforização, como facilmente se constatará, se introduzirmos o conceito de dimensão (integrando aquelas noções), também ele ponto de partida para novas especulações simbólicas. O modo como se organiza o espaço, as estratégias do ser humano, objectivando no espaço, as representações que engendra sobre a sua relação com as coisas imateriais e com o mundo sensível, deixa perceber que qualquer facto ou acontecimento, comporta dois modos de existência mutuamente interactivos: a realidade sensível e a sua representação mental, integrando as diversas formas de conhecimento, nomeadamente o conhecimento científico. Todavia, a explicação científica e racional de tal existência foi precedida do conhecimento simbólico e do pensamento metafórico.

A percepção de que a orientação global de qualquer acontecimento no espaço, implicaria igualmente a sua perspectiva no tempo, deve ter acontecido muito cedo na história da humanidade e certamente precedeu a sua explicação científica, o que remete para a representação simbólica primordial. Elias, na referida obra refere que “Einstein descobriu que o nosso universo é tetra-dimensional, tal não implica que de facto, a integração dos meios de localização, ao nível do tempo-espaço, fosse desconhecida antes de Einstein a tornar explicita. Qualquer mudança no comprimento é também uma mudança no tempo. È difícil admitir a ideia de que antes de Einstein, ninguém teve jamais consciência deste facto…”

Toda a realidade social e histórica contém-se indissociavelmente num tecido simbólico: os actos e acontecimentos, individuais e colectivos (o trabalho, o consumo, o amor, a guerra, a festa, a produção material e imaterial, as instituições, o poder, a religião e muito mais, com especial relevância para a linguagem), existem socialmente, integrando um tecido simbólico.

Isso é bem visível nas celebrações e práticas rituais, nomeadamente no Ágape ou refeição ritual, colectivamente partilhada pelos membros de um grupo, relevando os significantes observáveis nas diversificadas práticas gestuais e verbais que integra: disposição espacial hierarquizada, brindes e invocações, comunicação predominantemente vertical, assimetria no poder discursivo, ordens e incitações para fazer ou a não fazer e muito mais. Para além disso, toda a ordem simbólica, não se reduzindo a si própria, não pode iludir a dimensão funcional (racional) dessas complexas práticas de reforço do grupo, pela diluição do “eu” no “nós”. Em verdade valerá a pena debater ou consciencializar, o seu papel de reforço e actualização da comunhão/coesão do grupo, restauração identitária, da solidariedade e do sentimento de pertença, tanto mais relevante e necessária, quanto a persistência de um sentimento impressivo de desagregação dos relacionamentos sociais e de isolamento, nos tempos que correm. Daqui facilmente se infere a importância da participação de todos os membros de qualquer fraternidade no tipo de experiência que o ágape proporciona, acrescendo o facto de que, incorporar o alimento comum, corresponde a introjectar (simbolicamente) a norma cultural sancionada pela colectividade. Numerosos eruditos assinalam este tipo de práticas rituais em numerosos contextos culturais com especial relevância para as religiões, entre as quais a cristã, ou e ainda, nos rituais de morte. Não nos deteremos nas muitas e diversificadas práticas atinentes a este último aspecto, lembrando apenas o banquete (por vezes sumptuoso) ofertado pela família de um defunto, verificado ainda hoje nas culturas anglo-saxónicas, ao conjunto de vizinhos e amigos e o significado que isso representa, em termos de reforço do estatuto social da família do falecido.

Àgape e Amor

Na experiência cristã, segundo o Novo Testamento e o Evangelista João, a essência do àgape releva de uma energia amorosa implicada na caridade e na solidariedade, cuja efectivação permitiria a construção do Reino de Deus. Em suma o “puro amor de deus”. Em S. Paulo por sua vez, realizar a ágape, não apenas produz uma alteração do foro psicológico ou moral, mas igualmente uma transformação ontológica. Neste contexto a ideia de amor cristão, não refere propriamente um sentimento, ou um princípio gnoseológico, mas mais uma acção criadora do bem, conotado com um valor moral prático, interventivo, de partilha e solidariedade, pressentido em muitos movimentos religiosos, desde os primórdios, até aos nossos dias. Enquanto termo bíblico, o ágape, opõe-se á ideia de “eros”, na medida em que aquele exclui o desejo de posse reflectindo o egocentrismo humano.

 A refeição ritual

O Ágape, no seu duplo modo de existência (enquanto representação simbólica e realidade) deve ter sido objecto de (des)integrações e alterações de significado, ao longo dos séculos, variando ao sabor dos contextos culturais, pelo que seria humanamente impossível dar conta da sua polissemia de significações e sentidos.  Mas independentemente dessas variações e assumindo a diversidade de práticas e simbolizações (a celebração do funeral, a festa em honra dos mortos, ou das divindades, o banquete cerimonial em ritos de passagem, de iniciação ou propiciatório e finalmente na ceia cristã), é inegável o sentido essencial comum de tais práticas, que em última análise, remete para a afirmação vitoriosa de uma unidade do cosmos, sempre confrontado com as forças desagregadoras do caos ameaçador. E isto vale tanto para o banquete totémico das culturas antigas, como para as ceias (última refeição do dia) dos tempos apostólicos, com os participantes reunidos para a leitura dos evangelhos ou as ceias religiosas e das irmandades dos tempos modernos. Por exemplo, o ritual da Eucaristia ligada à tradição da ultima ceia, ocorre com similitude face ao ritual maçónico do ágape, uma vez que se trata de uma comunhão em nome de valores e princípios admitidos por todos os membros participantes. A comida encontra uma razão substantiva, não na quantidade, mas na sua essencialidade e projecção simbólica, porque o que é ingerido igualmente por todos, obstaculiza a fragmentação, recompondo e actualizando o “todo” e por maioria da razão, a simpatia fraternal.    No tempo das corporações medievais (incluindo os maçons operativos), os operários, muito provavelmente realizavam as suas próprias refeições em conjunto, no local onde trabalhavam, costume que de resto, deveria ser comum a todos os trabalhadores sobretudo se recuarmos no tempo. Sem dúvida que tal ocorrência contribuía para a emergência de um sentimento agregativo ou de inclusão do individuo no grupo. De resto, o sítio onde operavam (o local de trabalho ou a loja) reporta a noção de lugar na concepção da antropologia, ou seja, lugar vivencial de experiências do quotidiano, lugar identitário e relacional, opondo-se à ideia de não-lugar reportado à noção oposta observável nos sítios anódinos e anónimos, fragmentadores da experiência humana, dos não lugares em que vivemos. Na mesma ordem de factos registe-se a etimologia francesa da palavra companheiro (coupain), ou do latim”compane”, denotando o costume antigo, “daquele com quem partilho o pão”. Necessariamente que a maçonaria especulativa adoptando novas práticas e um renovado universo semântico mais adaptado a novas realidades, veio acrescentando novas significações, como por exemplo, os banquetes de lojas, inspirados na época pré-revolucionária francesa em que os utensílios e práticas se relacionam com significados militares. Nesta tradição tudo o que estiver na mesa adopta os termos utilizados na artilharia como vinho (“pólvora forte”), água (“pólvora fraca”), copos (“canhões”), entre diversos outros.

Nota Final

Especulando um pouco, é possível que as concepções clássicas que consideram o ágape como um resultado da ingestão de alimento, como elemento reparador/ restaurador do corpo, enquanto totalidade física e psíquica. Um sistema orgânico carenciado, entra em rápida entropia, pelo que a ameaça da fome deve ter sido pressentida como confronto com as forças desagregadoras e caóticas geradoras de desequilibras pondo em causa a integridade do “ser”. Mas não apenas. Lembremos que ao longo da história da cultura humana, a fome (e o intenso desequilíbrio psíquico-biológico que provoca) surge sempre como possibilidade tangível e assim sendo, na sua dramaticidade, a fome (ou a sua possibilidade), induz na experiência da refeição em grupo, a solidariedade, a coesão do colectivo, o reforço de uma memória e de uma identidade.

A passagem do micro ao macrocosmo surge então, como inevitabilidade sendo a natureza do “alimento” a variação notável. No fundo o que se trata é, e sempre, de uma tentativa de utilização de dispositivos técnicos e culturais, no sentido de reposição de equilíbrios sempre ameaçados.

E isto vale também para eventuais reflexões sobre a angústia da crise ampla e profunda dos nossos dias, em que o desequilibro entre o “dar” e o “receber” constitui recorrência. Com efeito paralelamente e subjacente á história económica “clássica “existe um outro registo, sobre uma economia da “dádiva” em que a obrigação moral de dar, retribuir e partilhar o excesso, que os antropólogos registam como o início primordial das trocas sócio-económicas, foi pensada e exposta por uma enorme plêiade de pensadores, filósofos e místicos como o nosso Santo António de Lisboa. Mas isso são desenvolvimentos que aqui não cabem.

DISSE

Fernando Casqueira VM