Justiça e Verdade

Falar de justiça e de verdade obriga desde logo a procurar fixar o significado de cada um destes conceitos. Trata-se naturalmente de realidades com uma estreita relação que se espera que caminhem lado a lado, mas que se constata que nem sempre tal acontece. As teorizações à volta de ambos os conceitos são muito diversas e de complexidade variável.

Das várias definições de verdade encontradas, importa como primeira reflexão acerca deste conceito sublinhar que, a verdade será antes de mais, a conformidade com um facto ou realidade.

Contudo, tal afirmação não basta, pois devemos também ter presente que a verdade pode ou não estar em conformidade com um facto ou realidade, argumentando-se que ela é acima de tudo, uma interpretação mental da realidade transmitida pelos sentidos.

Podemos aperfeiçoar ainda mais esta ideia e acrescentar que, para que estejamos de facto perante a verdade, essa interpretação mental transmitida pelos sentidos, deverá ser confirmada por outras pessoas e por equações matemáticas e linguísticas que permitam construir um modelo de interpretação aplicável a casos semelhantes no futuro.

Para o que nos interessa analisar, podemos ainda considerar dois tipos principais de verdade – a verdade material e a verdade formal.

A primeira deverá ser entendida como a realidade em si, o que de facto acontece ou aconteceu. No caso de um processo judicial será o que existe ou existiu, independentemente de constar ou não nos autos.

A segunda é a que resulta da inferência a partir de postulados ou axiomas aceites como verdadeiros, na prática é a verdade que resulta do que está contido nos documentos que são apresentados. No caso de um processo judicial será o que consta nos autos, traduzindo-se no brocardo latino – “quod non est in actis non est in mundo” (o que não está nos autos não está no mundo).

Quanto à justiça, numa breve passagem pela Wikipédia, rapidamente percebemos que o conceito de justiça está presente em diversos campos do saber, nomeadamente, no estudo do direito, da filosofia, da ética, da moral e da religião. Ao longo da história, vários foram os estudiosos que se debruçaram sobre o seu significado.

Na antiga Grécia, merecem destaque a posição de três dos seus principais filósofos, Aristóteles, Platão e Sócrates.

Para Aristóteles, a justiça deveria ser entendida sobretudo como sendo “uma igualdade proporcional, defendendo o “tratamento igual entre os iguais e desigual entre os desiguais, na proporção da sua desigualdade”.

Para Platão, a justiça deveria ser vista como “sinónimo de harmonia social, sendo o justo aquele que se comporta de acordo com a lei .

Sócrates por sua vez, defende que “a justiça é virtude e sabedoria, é falar a verdade e devolver ao outro o que lhe pertence”, e que “a injustiça é maldade e ignorância”.

Um outro contributo relevante para esta temática foi-nos deixado por São Tomás de Aquino, que se afirmou sobretudo durante a Idade Média, defendendo a justiça como sendo “a vontade de dar a cada um o que é seu. Tomás de Aquino entende que “não há um código absoluto de uma justiça invariável, tendo em vista que a razão humana é variável” e que, “se somente a vontade de Deus é invariável, então a justiça somente pode estar em Deus.

Importa ainda fazer uma referência às duas grandes categorias que agrupam as principais teorias modernas sobre justiça. Numa primeira categoria, a ideia de justiça relaciona-se diretamente com a ideia de equidade. Numa segunda categoria, a ideia de justiça está mais ligada ao conceito de bem-estar. Cada uma delas comporta uma série de teorias diferentes que, tendo em conta as limitações impostas para a realização deste trabalho, entendo não ser imprescindível abordar.

Há, contudo, um autor, John Rawls, cuja teoria importa analisar, pela influência que teve em muitas das outras teorizações à volta do conceito de justiça como equidade e pela importância que, por esse motivo, a sua obra “A Theory of Justice”, publicada em 1971, acabou por ter.

Segundo J. Rawls (1971), os direitos individuais não poderão ser violados mesmo que em benefício da maioria, ou seja, a negação da liberdade a alguém não fica legitimada pelo facto de daí resultar um benefício para a generalidade das pessoas. O mesmo acontecerá na situação em que se equacione a imposição de sacrifícios a uma minoria para que daí resultem benefícios para a maioria. Assim, numa sociedade justa, as liberdades individuais e a igualdade entre todos os cidadãos terão necessariamente que estar garantidas.

A justiça é portanto a primeira virtude das instituições, tal como a verdade é a primeira virtude dos sistemas de pensamento, querendo com isto sublinhar que, uma qualquer instituição por muito bem estruturada e eficiente que seja, deverá ser reformada ou até mesmo extinta se não for justa e que uma teoria que não assente na verdade, terá necessariamente que ser revista ou abandonada.

Podemos então concluir que, a justiça deve basear-se na verdade e buscar a igualdade entre os cidadãos. Este poderá ser considerado o estado ideal de interação social, certamente um dos principais desígnios da humanidade.

Contudo, mesmo um espirito menos atento ao que se passa no mundo, rapidamente concluirá que em muitos lugares tal não passa de uma utopia. E não se torna necessário olhar para o terceiro mundo, pois no mundo dito civilizado não faltam exemplos que nos obrigam a concluir que, o que deveria ser entendido como virtude moral tendo como farol a equidade, se vai perdendo na bruma da chamada “pós-verdade”, rejeitando-se a verdade em benefício dos apelos emocionais e das crenças pessoais.

Será caso para dizer que, mesmo em muitos dos países ocidentais, onde a estátua de olhos vendados (que na antiga Roma traduzia a ideia de que todos os cidadãos são iguais perante a lei) continua a ser ostentada, devemos garantir que nunca lhe seja retirada a venda para que não se assuste com os “alternative facts” que por aí vão sendo fabricados e apresente a sua demissão…

AM, FP