Os palimpsestos são suportes em papiro ou pergaminho reutilizados para a escrita depois de já terem sido utilizados para esse fim.
Ou seja, em vez de se destruir um documento porque aquilo que ele revela já não interessa, apaga-se o original o melhor que se pode e volta-se a ter um suporte para nele inscrevermos as novas ideias: reciclagem “avant la lettre” …
Mas apagar eficientemente escritos ou lá o que seja em papiro ou pergaminho, é uma tarefa complicada e raras vezes bem-sucedida. Chegava-se mesmo a utilizar pedra pomes para, com o seu poder esfoliante, conseguirem-se resultados satisfatórios para que a nova inscrição fosse legível.
Isso foi conseguido algumas, mas raramente o que estava por baixo desapareceu completamente: deparamo-nos com uma espécie de ‘dois em um’ onde, muitas vezes, o original é mais surpreendente do que o novo.
Acontece isso com o denominado ‘Palimpsesto de Arquimedes’, pois sobre os escritos feitos por este cientista de Siracusa, encontram-se hoje orações e salmos de um convento, completamente irrelevantes.
Portanto, podemos ler hoje, sob o que os frades escreveram, temas tão importantes como: ‘O equilíbrio dos planos’, ‘Espirais’, ‘A medida de um circulo’ e, entre outras, quiçá a mais importante de todas, a obra sobre ‘‘O método dos teoremas mecânicos”, visto ser a única cópia conhecida de Arquimedes sobre o tema.
Acho que a GLUP é um Palimpsesto Maçónico, porque sendo a nossa obediência uma obediência recente, ela ‘inspira-se’, se me é permitido o termo, nos princípios e landmarks que nos precederam, nos antigos textos e constituições nos quais nos revimos e que estão escritos, indelevelmente, sob a nossa Constituição; e é sempre conveniente não perder de vista o texto original para dele não nos afastarmos.
Assim sendo, considero o palimpsesto como a metáfora ideal para não descurarmos o que está por baixo daquilo que somos, funcionando como uma cábula sempre à mão, mesmo debaixo do nosso nariz, literalmente, para não cometermos irregularidades que se afastam da Iniciação.
Sabemos que sempre que vários Homens fazem parte de um determinado projecto, há divergências, é inevitável e está na nossa natureza, na eterna procura pela homeostasia; se os intervenientes forem Maçons e se perceberem o significado do que é ser Maçon, essas divergências podem ser construtivas, benéficas ou, até mesmo, desejáveis.
Mas se uma das partes tiver comportamentos profanos na resolução de matérias sagradas, chegamos a situações muito melindrosas, direi mesmo perigosas para o futuro da nossa e de qualquer futura obediência.
Compete-nos a todos nós, e neste momento ao vosso VM em particular, fazer destes assuntos uma aprendizagem. Para alguns pode mesmo ser tão difícil trabalhar esta adversidade que preferem afastar-se, adormecer dizemos nós, até que as coisas se endireitem; não defendo essa opção, pois em tudo na vida há uma lição a tirar e convém estarmos acordados, e bem, para disso nos apercebermos.
E a ‘zona de conforto’(?) que todos buscam(?), ou de onde não querem sair, pode tornar-se bafienta, letárgica ou mesmo uma antecâmara da morte.
Compreendo que as expectativas possam estar defraudadas, mas não adianta desistir.
Só utilizando o lodo para ir mais fundo nos alicerces da construção do Templo é que se chega a um terreno com mais garantias para aguentar os pisos a edificar, leia-se graus simbólicos.
Se reconhecermos que desceu sobre nós a mais profunda e a mais mortal das secas dos séculos – a do conhecimento íntimo da vacuidade de todos os esforços e da vaidade de todos os propósitos, tudo é mais compreensível. Esta frase é de Pessoa e também é dele a que denuncia que nós nunca nos realizamos. Somos dois abismos – um poço fitando o céu.
Todas as pranchas, e esta não é excepção, são escritas num palimpsesto; cada gesto, cada palavra, cada frase evolui num campo outrora preenchido por um antigo gesto, uma palavra arcaica que construiu uma frase sagrada.
Ao ler o que aqui escrevi, revela-se-me um outro texto, quiçá também ele escrito sobre outro ainda mais provecto e que, por desígnios que não alcanço, guia a minha atenção para o seu conteúdo subliminar.
“A ordem só pode surgir do caos. A Maçonaria procura aceder a uma fase superior de civilização e de cultura; é a ascensão de uma nova ordem dos deuses depois do terrível e fecundo caos; é o aparecimento de uma nova construção cósmica onde habita o tema eterno da queda do Homem precedendo a sua ressurreição.
Morte e transfiguração! O mito de Orfeu liga-se à lenda da Fénix. E Hiram inscreve-se nesta linhagem iniciadora.
A ascese maçónica tende para o aperfeiçoamento moral e espiritual do indivíduo e este equilíbrio condu-lo a procurara a harmonia Universal.
Na época da era do Aquário (…/…), compete a cada um saber o que é, o que deve realizar, pois a ordem maçónica não aceita qualquer compromisso; está para além do Tempo, para além das paixões.”
Descubro, graças ao palimpsesto conter partes que consigo identificar, que o seu autor foi Jean-Pierre Bayard, e que o revelou em 1986.
Este nosso Irmão foi iniciado na Grande Loja de França em 1954, ano em que eu nasci, e também descobri que ambos somos aquarianos. A sua sabedoria era enorme (aí divergimos…), pois foi recebido grau 33 do REAA e portanto sinto um privilégio enorme de lavrar o meu texto sobre o dele…
Mas há mais! Jacob Böhme, um sapateiro alemão nascido em 1575, também aparece sob a letra do Jean-Pierre e é dele a seguinte frase:
“No Nada, fora da natureza, Deus é um mistério, porque fora da natureza é o Nada; ou seja, um olho da eternidade, um olho insondável que nada é, nem nada vê, porque não tem fundo, e este mesmo olho é uma vontade, entendam: representa uma nostalgia da revelação, uma nostalgia de encontrar o Nada.”
Este olho figura no delta luminoso por cima de nós e dá-nos esse poder de liberdade, a liberdade primordial do insondável, do sem nome e sem forma tocando directamente no mistério do Ser!
Remato com o desejo de que se o simbolismo for compreendido como uma linguagem universal, a Luz trespassará as trevas e o Grande Conhecimento a que os budistas chamam Despertar, os hinduísmos Libertação e os Maçons Oriente Eterno, ser-nos-á mais cedo ou mais tarde desvendado.
Não desistamos, MMQQII, há sempre uma Palingenesia (*)!
A última frase do meu palimpsesto é de Fernando Pessoa:
Vivemos todos, neste mundo, a bordo de um navio saído de um porto que desconhecemos para um porto que ignoramos; devemos ter, uns para os outros, uma amabilidade de viagem.
Templo Pátria, 9 de maio de 6018, LVB, VM da RL Phi nº9
*Palingenesia. Etimologicamente, renascimento, regeneração. O termo foi empregado em contextos diferentes. Por exemplo, no estoicismo de Marco Aurélio, designa a eternidade cíclica no decorrer da qual reaparecem periodicamente os mesmos eventos. Na época moderna, o termo significa seja a regeneração cíclica dos seres vivos, segundo certos autores, seja o ritmo cíclico que caracterizaria o devir histórico das civilizações.
A palavra palin significa “novamente”, “outra vez”, “de volta”. Palingenesia é o suposto regresso à vida, depois da morte real ou aparente. (a palingenesia – não é apenas reencarnação –, pois não se aplica somente à vida orgânica).